CIFA

Narração da Travessia de uma Crise Radical

NARRAÇÃO DA TRAVESSIA DE UMA CRISE RADICAL

O Espírito Santo é tão lindo, tem momentos em que nem nós mesmos sabemos o que se passa dentro da gente. Não encontramos palavras e nem forças para descrever. Mas aí ele vem, sonda o mais íntimo de nosso ser, traduz nossas lágrimas e gemidos, e traz a calma que nossa alma precisa! ”

 DO MEIO DAS ÁGUAS RENASCE A CORAGEM, A RESISTÊNCIA, A RESILIÊNCIA E A FÉ!

Foi no dia três de maio de 2024, após cinco dias de fortes chuvas, o dia amanheceu nublado, barulho no ar, helicópteros que sobrevoavam o Bairro Mathias Velho, Canoas – RS. As notícias eram de que havia possibilidades de inundações. Saí a tarde pelo bairro, famílias inteiras em frente das casas, diálogos com vizinhos, olhares que atendiam a qualquer movimento. Alguns carros carregando mantimentos, caminhões encostados nas casas carregando mudanças. Clima de insegurança e medo no ar, alguns já saindo do bairro, outros bem descrentes de que algo pudesse acontecer. Enfim, o inesperado aconteceu.

  1. Decisão de sair ou não sair de casa – resistência por parte de algumas, descrédito:  não, isso não vai acontecer. E insistência por parte de outras:  vamos, pois pode acontecer o pior. Preocupação com a pessoa de idade: se acontecer algo, como sair. Foi importante neste momento a palavra e insistência do Pároco Frei Natalino, OFMCap, que passou por lá na tarde daquele dia 3: As previsões são sim de alagamento. Ergam as coisas, os móveis da casa, e se possível saiam de casa, porque a água vai vir. Isso confirmou ainda mais a decisão de sair. Decidimos então, como fraternidade, sair de casa e irmos até o início do Bairro, na casa de uma família amiga -  Dona Teresinha, Coordenadora Paroquial da Pastoral da Mulher.
  2. Primeiro impacto – Saída de casa. Pergunta: O que importa na vida neste momento? O que levo? O que é possível levar?  Que não ocupe muito espaço e nem peso. Escolher. E abrir mão de muitas outras coisas, era como que se rasgasse o coração. Deixar ir, despojar-se de tudo, de tudo... levar o essencial. No confronto entre a vida e a morte, a pergunta era: o que você deixa e o que você leva?
  3. Impotência diante do que estava por vir. Olhei para a casa, as coisas e fui na capela olhei para o “Divino Hóspede” e entreguei tudo nas mãos do Senhor e da Virgem Aparecida. “Cuidem de nossa casa! ”. Tudo de fato, está em Suas mãos. Não tinha o que fazer. Como levar as coisas? Vontade de tirar tudo de dentro, deixar só a casa, mas precisava de fato confiar e entregar... entregar, despojar-se. Saí com o coração apertado, sabendo que muita coisa não poderia mais rever ou ter. Tanta vida, tantas histórias.
  4. Acolhida de D. Teresina e Sr. Nelson da Comunidade São Pio X, de Mathias Velho. O casal foi prontamente disponível a nos acolher na sua casa, naquela noite do dia três. Lá, serviram uma gostosa janta, dormimos lá e pelas 04h30min da manhã, a água começou a chegar também na rua da casa onde estávamos. E de hora em hora, se via cada vez mais a água enchendo as ruas, tornando-se um grande rio e já levando coisas embora. Só se via, carros que saiam do bairro e famílias que saiam em grupos por meio da água e isso nos deixava cada vez mais angustiados e com medo que a água levasse estas pessoas. Pais e mães com crianças no pescoço, protegendo-as das águas, saindo bairro a fora. Outros com animais no colo. Ajudamos a socorrer um casal que estava a duas casas de onde estávamos que saíram pelo telhando, pois, sua casa já estava em baixo da agua e ajudamos a passar através da sacada para um segundo piso de outra casa, mas tudo com muita coragem e fé, pois a qualquer momento poderia quebrar a telha da casa e eles caírem no rio que já havia se formado.
  5. Começamos a acompanhar nos marcos das casas e dos muros o quanto a água ia subindo. Com isso começou a aumentar a ansiedade e preocupação em já pensar uma forma de sair. Conversamos entre nós e decidimos que começaríamos a chamar socorro através dos barcos. Isso era 10h da manhã do dia 4 de maio. A comunicação entre os grupos do Wats era de que cada família colocasse um pano vermelho na janela ou na sacada para mostrar aos que estavam resgatando pessoas que ali tinha gente para resgatar. Era um sinal de socorro. Além, claro, dos gritos por socorro. Os barcos que passavam e gritavam que a preferência era para: acamados, doentes, idosos e crianças.
  6. Sentimento de negação da realidade – Até aqui, pairava um sentimento de negação da realidade. Não, isso Deus não vai permitir que aconteça. Não vai ter tanta água de encher nossas casas. Isso não vai acontecer.... Mesmo estando já na casa de Dona Teresinha, o que se passava era: aqui estamos bem, estamos protegidas, a água não chega no segundo piso. E tudo isso, aos poucos foi dando lugar para a real situação. Estávamos vivendo sim, a pior enchente da história do Rio Grande do Sul. Muito medo a pairar no ar.
  7. Acolher é um gesto de amor - O primeiro barco que parou para nos levar foram as 14h da tarde. Isso porque tínhamos pessoas idosas para serem resgatadas. E então, como fazer passar as pessoas pela sacada da casa, descer pela escada e chegar ao barco? Foi uma ginástica, um ajudando o outro. Os socorristas eram três jovens do corpo de bombeiros, muito gentis, passavam tranquilidade e segurança para quem estava sendo resgatada. Cada vez a água subia mais e começou a se tornar um grande rio. Fomos resgatados em três barcos diferentes e levados até o centro de Canoas. Fomos acolhidas pelas Irmãs de Notre Dame, no Colégio Maria Auxiliadora.
  8. Prova de fé. No domingo participamos da Missa na Igreja São Luiz, para rezar o sofrimento pela qual passávamos todas nós e nosso querido povo de Mathias Velho. Com toda a dor no coração, entrar em procissão na missa na Igreja São Luiz, no dia 5 de maio (domingo) para fazer a leitura e cantando: O RESSUSCITADO VIVE ENTRE NÓS. AMÉM, ALELUIA. Do fundo da dor, do fundo da perda, do fundo do abismo, abrir o coração e com fé cantar: o Ressuscitado vive entre nós. Onde ele está, onde ele estava neste momento de tragédia? Onde estava Deus? Ele estava sofrendo conosco, ele andou no barco conosco nos salvando, ele estava nos socorristas incansáveis salvando vidas e arriscando a vida. Sim, o Ressuscitado vive entre nós. Ele passou pela cruz, mas ressuscitou. Experimentamos na carne, no corpo, o Deus que se fez humano, que se fez um de nós. Ele estava andando conosco sobre as águas, ele nos carregou no colo, ele nos sustentou.
  9. Escutar-se e escutar – A dor que se vive é tão grande que parece nem poder escutar-se a si mesma. Dificuldade de parar, de olhar para si. E de acolher que de fato, isso estava acontecendo e não era uma fantasia. A sensação de dormir e acordar em um outro estágio, sem conseguir aterrissar na realidade. Quando comecei a escutar a dor do outro, fui vendo que a minha dor ainda era pouca perto de uma senhora que tinha perdido a casa, perdido tudo pela segunda vez, e que no momento não tinha notícias do marido que havia desaparecido. Isso começou a tocar a coração e ver que eu poderia ajudar ela, somente escutando sua dor, seu lamento, suas dores. Ao passar pelo ginásio de esportes e ver uma multidão de abrigados, pessoas profundamente doentes, idosos, cegos e escutar suas histórias de como conseguiram sobreviver, comecei a ver que ainda diante da tragédia, eu era uma privilegiada, pois tinha saúde e tinha sobrevivido, apesar da dor.
  10. Sentimento de revolta – Aos poucos o sentimento de negação deu lugar à revolta: Por que tudo isso? Por que conosco? Por que agora? A dor era tão grande que parecia não haver espaço para Deus, mas Deus estava nesta dor, Deus estava sofrendo conosco, Deus estava chorando conosco. Deus estava ao nosso lado nos mantendo na fé e na esperança, embora o coração coberto de dor. As pessoas ao nosso redor, de nossa Rede de Comunidades São Pio X, eram as primeiras a manifestar esperança, força e fé. E nos davam confiança: Vamos recomeçar tudo de novo. Em nenhum momento demonstraram desanimo. Sempre muita esperança e coragem. Tudo se foi. A perda é grande, mas não perdemos o principal, A VIDA. Sim, experimentar a total desapropriação de um momento para o outro, é uma dor profunda que somente quem vive pode um dia descrever. Uma dor que nos coloca no confronto mais profundo conosco mesmos, com o valor da vida humana, com Deus. E que somente Deus pode nos reerguer e a presença amiga e solidária de pessoas amigas que não fazem mais nada se não acolher, escutar, entender e estar junto.    
  11. No “caminho” encontramos muitas pessoas do bem. Pessoas conhecidas e desconhecidas que não mediam esforços para serem solidários e próximos. Pessoas que nos socorreram, prestando ajuda, acolhida, solidariedade e amor. Que usaram da força para nos proteger e o barco não afundar nas águas. E assim, conforme buscávamos sair daquela cena dramática, encontrávamos tantas famílias sendo socorridas, muitos idosos, doentes, muitas crianças, com pouca roupa, na água e no frio. Rostos sofridos, muito sofridos, assustados, rostos e corações carregados de dor e sofrimento. Cenário que nem tem como descrever, mas que os corações que lá estiveram, viveram. Cenas que jamais serão esquecidas. Cenas que ficarão para sempre em nossas memórias.
  12. Encontramos no “caminho” Irmãs na Vida Consagrada que abriram as portas para acolher a nós e a tantas famílias desabrigadas. Que foram acolhida, que foram consolo, que foram presença, escuta, solidariedade e amor. Obrigada Irmãs de Notre Dame. Obrigada, Deus lhes dará em dobro, tenho certeza. A Província e a Escola Maria Auxiliadora, não hesitaram em abrir as portas e acolher a todos e prestarem um serviço incomparável neste momento de tanta dor e sofrimento. Com fé, alegria e esperança no rosto acolheram, acolheram, acolheram.... Obrigada pela escuta e pelo desejo de dar o melhor para todos, abrindo o espaço interno de vosso cotidiano para acolher tanta gente que vocês não conheciam. Abrir o espaço sagrado para que pudéssemos rezar diante do Santíssimo, buscando entender tudo o que se passava. Quantos rostos que diante do Santíssimo só choravam, pois PERDERAM TUDO, SÓ NÃO PERDERAM A FÉ.
  13. Tiveram também pessoas que não entenderam o que se passava conosco. Não entendem e não entenderão jamais. Foi apenas, mais um susto. Aliás, foi um grande susto. Parecia que íamos todos perecer. Parecia o fim. Mas não era o fim, a mão de Deus estava conosco. Sim, ela estava. Deus estava nas águas, Ele estava nos protegendo através dos anjos que nos salvaram. Através das companheiras e companheiros que em nenhum momento soltaram a mão de ninguém. Enquanto a bateria do celular funcionava, estavam lá todos, salvando vidas, passando informações, cuidando uns dos outros. Pedindo socorro por todos. Gritando para que as pessoas não se arriscassem nas águas.
  14. Medo de retornar para casa. Sim, medo. E o que vamos encontrar? Como tudo estará? Sim, medo de enfrentar mais uma dramática realidade de destruição. É duro, é muito duro enfrentar o cenário onde estão contabilizadas muitas lutas, muito esforço, muito sacrifício, muitas noites mal dormidas para garantir um processo, uma conquista. Muitas lembranças, muitas histórias que se foram.
  15. A vida é sempre aprendizado. Esse momento foi um grande aprendizado. Em primeiro lugar, a pergunta: O que realmente importa na vida? O que? O que é importante na minha vida? Em segundo lugar a vivência na sua essência do total despojamento. Despojar-se de tudo, de tudo o que foi fruto de tanta luta, estudo, aprofundamento, dedicação. Ficou a essência, a VIDA. Em terceiro lugar a Resiliência, a realidade vivida nos forçou a desenvolver com força a capacidade de resiliência, a capacidade de se recuperar e ajudar quem estava ao lado, com talvez maior sofrimento ainda, pois além de perdas materiais, perderam pessoas. A realidade nos forçou a adaptar-se à situação que “caiu” fortemente como água, que veio com força e poder de destruição. Em quarto lugar, Solidariedade. Não como teoria, mas como vivência. Muita, muita gente solidária com todos. Estendendo a mão, abraçando, ouvindo, alcançando um prato de comida, uma garrafa de água. Partilhando suas roupas, comidas, animais de estimação para ver o rosto de uma criança sorrir novamente. Muita solidariedade de todos os lados e de todas as formas. A palavra “ajuda” nunca foi tão importante e sentida neste momento dramático.
  16. De tudo, restam a fé, a esperança e a caridade.  Sim, isso nos mantém de pé, pois cremos no Deus da Esperança e da vida. Perdemos tudo, só não perdemos a fé. Seguir peregrinos na esperança, é o que nos resta. Não desistir da vida e da luta, é nossa bandeira. Confirmados no amor e no compromisso com todos, pois neste momento o que importa é a vida de todos, nos salvamos juntos com muitas mãos amigas e solidárias, agora, continuemos juntos. A resistência, a paciência e a força no simbolismo do Cavalo Caramelo nos dê a certeza que é possível um momento novo. Continuemos firmes acreditando no Deus da vida que nunca nos deixa só, caminha conosco e nos mantém de olhos fixos em seu Filho Jesus de Nazaré. Que o amor e a corrente da solidariedade e do bem sejam a marca de nossa existência. “Enquanto temos tempo, façamos o bem a todos” (Gl 6,10).

 

Ir. Salete Veronica Dal Mago

21 de maio de 2024.