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Clara e a Oração

A oração é parte de nossa vida cristã. O próprio Jesus nos ensinou a orar (Mat 6, 9-13) e recomendou que tivéssemos momentos de oração pessoal (Mat 6, 6). Assim que não há como pensar em ser cristã/cristão sem oração. Papa Francisco, em sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, diz que “o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural” (nº 116), do que se supõe que, tampouco, dispõe de um único modelo de oração.  Na vida da igreja, foi se desenvolvendo métodos, formas, ritos, que nos ajudam a rezar, cada época com suas características; com homens e mulheres, de tempos e culturas diferentes, que dão testemunho de uma vida de oração.

 A vida de oração é parte de nosso discipulado. Quem se coloca no seguimento a Jesus necessariamente se coloca em oração. Entendemos que a oração alimenta nosso caminho de fé e nossa vida de discípulas missionárias. Entendo oração como encontro. Para Grün (2001, p.24 e 25) pensar a oração como encontro é pensar em encontro que transforma, encontro que faz chegar ao mistério da vida, ao mistério do outro, ao mistério de Deus. Este encontro é dom gratuito, não é fruto de um esforço pessoal. É graça de Deus. 

Clara e Francisco foram pessoas de oração. Entenderam a importância destes encontros e nos legaram o testemunho de serem pessoas orantes. Ambos reconhecem o dom, a graça de Deus. Clara na sua vida em São Damião estabeleceu seu ritmo de oração e trabalho. Pensar uma vida de clausura, como de Clara, pode parecer óbvio que é uma vida de oração, contemplação e podemos correr o risco de assim não dar a devida importância. Apresentarei aqui alguns aspectos da vida de oração de Clara; de sua forma de se colocar em oração e da força desta oração. Encontra-se muito mais literatura sobre a contemplação em Clara de Assis, e até me perguntei sobre o que vem antes, oração ou contemplação? Creio que andam juntas, mas neste texto abordarei a oração.

 Espírito do Senhor

A experiência de Clara de Assis é que tudo é graça de Deus, é dom de Deus. Desde a sua vocação, ela assim o entende (TestC 2-4). Mas Clara também sabe e experiencia a ação do Espírito Santo em sua vida. Na segunda carta a Inês recomenda à sua irmã que não confie em ninguém para ser fiel e cumprir seus votos ao Altíssimo na perfeição do Espírito Santo (2In 14). Na quarta carta à Inês fala da alegria de escrevê-la, de que com Inês se alegra e exulta na alegria do espírito (4In 7).   

No início do segundo capítulo da sua Regra ela fala das que vierem a querer abraçar esta vida por inspiração divina (RSC 2,1), reconhecendo que é ação de Deus na vocação das Irmãs Pobres de São Damião. No capítulo seis da mesma Regra, ela diz que o altíssimo Pai Celeste se dignou iluminar seu coração (RC 6,1) para ela fazer penitência e seguir os ensinamentos de Francisco. Estes mesmos termos ela usa no seu Testamento (TestC 24). Em seguida, ela cita a forma de vida que Francisco escreveu para elas na qual também faz referência à inspiração divina. É por esta mesma inspiração que as irmãs de São Damião desposaram o Espírito Santo (RSC 3). No Testamento, Clara revela que prometeu a Francisco obediência, voluntariamente, como o Senhor nos concedera pela luz da sua graça. (TestC26)

Brunelli (1998, p. 147) fala da forma de unidade vivida em São Damião, decorrente do fato de sentirem-se irmãs de Jesus Cristo, o que as faz irmãs entre si. Assim, a irmandade tem como fonte a filiação divina e o seguimento a Jesus Cristo. É vocação concedida pelo Espírito Santo.  A experiência de Clara é trinitária e o autor desta experiência é o Espirito Santo, conforme a mesma autora (p. 148). São filhas do Pai celeste por eleição divina e ação do Espírito Santo (RSC 6,3). Brunelli (p.148) ainda afirma que a conversão de Clara à Boa Nova do Reino de Deus e a presença ativa do Espírito Santo produzem como fruto a vivência da irmandade.

Para Zavalloni (1995, p. 206) a vida de Clara, centrada em Cristo, não esconde a ação do Espírito Santo, que é fonte de toda inspiração e sua “santa operação”, levando à união mística da alma fiel que se torna “mansão e sede do Criador” (3In 22).

Espírito de oração

O momento histórico que Clara viveu foi marcado pela busca de riquezas, disputas de poderes, crescimento do comércio, surgimento de nova classe social; honras e glórias nas cruzadas à Terra Santa e nas cátedras universitárias e,  Clara grita um apelo à vida de união com Deus. Zavalloni (1995, p.201) diz que este ideal não é novidade na Igreja, é pouco comum para mulheres, mas a jovem de Assis o renovou com vigor e despertou uma grande vibração pela mais alta forma de oração, que não perdeu sua intensidade. Este mesmo autor diz que se pode dizer de Clara o que Celano disse de Francisco “transformado não só em orante, mas na própria oração. ” (Zavalloni,1995, p.206)

No capítulo nove da Regra, que trata do trabalho, no primeiro parágrafo ela recomenda as irmãs a trabalharem com fidelidade e devoção, mas que não extingam o espírito da santa oração e devoção (RSC7,1-). No capítulo dez ela fala às irmãs que não sabem ler que desejem ter o espírito do Senhor e sua santa operação e orar sempre com coração puro (RSC10, 8-10). Estes são textos tirados da Regra de Francisco. Segundo Iriarte (1978, p. 39) isso demonstra que a oração mental era um exercício importante em São Damião e não estava sujeito a regulamentação. Cada irmã deveria abrir-se à ação divina espontaneamente e com docilidade. No capítulo nove ela se refere à oração como dom a ser oferecido (RSC 9,8).

No capítulo três da Regra, Clara estabelece as obrigações da oração, do jejum e da recepção dos sacramentos. Rotzetter (1994, p. 277) ao comentar este capítulo, diz que as obrigações de oração correspondem às da Ordem franciscana e como estava previsto na Regra de Inocêncio IV: a distinção entre “irmãs que tem formação” e “irmãs que não sabem ler”. As primeiras rezam o ofício divino e as outras um determinado número de pai nosso. Mas Clara ainda acrescenta que se as irmãs com formação não puderem rezar o ofício rezem os pai-nosso. Ela ainda menciona a oração pelos defuntos e quando falece uma irmã.  

No mosteiro de São Damião as irmãs celebravam a liturgia das horas; todas as horas canônicas eram comuns e davam ritmo ao mosteiro. Clara zelou por estas orações. Ela era mulher de oração intensa, diligente e solícita na oração; sua maior preocupação era a vida de oração, contemplação e exortação. (Zavalloni,1995, p.204)

Na bula de canonização diz-se que Clara entregava-se assiduamente a vigílias e orações, era a isso que dedicava principalmente seu tempo de dia e de noite (BC 48). Daí entende-se que a oração na vida de Clara era um modo de viver; assim ela entendia o seguimento a Jesus Cristo. A Legenda Versificada fala que Clara vigiava nos louvores, cantava hinos, rezava cada vez melhor; destaca a oração atenta, oração pura; a oração como busca do esposo. Era a primeira a levantar-se para acender as velas, tocar o sinal. Não dava lugar para a preguiça, espantava toda tibieza...quando se tratava da oração. (2LV 17; LSC 20, 8)

No processo de canonização as testemunhas também ressaltam a assiduidade de Clara na oração (PC 1, 7 e 9), no falar com Deus (PC 3, 3); sua vigilância na oração (PC 6, 3); sua atitude diligente e solícita na oração (PC 7,3); os tempos longos de oração; seu gosto de ouvir a Palavra e Deus. (PC 10, 3 e 8). Realmente a oração para Clara era parte de sua vida, de seu caminho de seguimento. Expressão de sua total adesão ao Senhor. Era desprendida de tudo para estar toda com Ele.   

Todo o ser em oração

A narrativa da revelação bíblica não dissocia alma e corpo, interior e exterior, prática religiosa e vida comum, sendo que no centro está a vida. A concepção bíblica defende uma visão unitária do ser humano.  O corpo que somos é uma gramática de Deus. (Tolentino, 2016, p. 11 e 12). Na história da Igreja foi se dissociando alma e corpo, uma visão dualista que até menosprezou o corpo, principalmente o corpo das mulheres, este ligado ao pecado.

Rezar com corpo e pensar em uma espiritualidade que tenha presente o corpo não era comum no tempo de Santa Clara. Clara e Francisco fazem essa experiência e a espiritualidade francisclariana é ou deveria ser uma espiritualidade em que o corpo também participa.  O desafio é atirar-se para os braços da vida e ouvir aí o bater do coração de Deus. (TOLENTINO, 2016, p. 13) Em nosso corpo pulsa vida, nele também há um coração que bate e que em nossa vida de oração vamos aproximando ao coração de Deus para que batam em um só compasso.

Temos como uma das linhas de pensamento nesta reflexão a oração como encontro, o qual transforma. Essa transformação não é, necessariamente, só interior, mas também uma transformação exterior. Isso Clara tem presente quando escreve a Inês e pede que olhe no espelho todos os dias e enfeite-se toda interior e exteriormente (4In 15-16). Um encontro que leva a uma ação ou expressão interior e exterior.

Lendo as descrições sobre Clara em oração, vê-se que ela estava nestes encontros toda inteira. A sua vida de oração se expressava pelo seu corpo. Todos os seus sentidos estavam envolvidos. Conseguia viver estes encontros com todos os seus sentidos. A legenda diz que Clara, prostrada em oração com rosto em terra, regava o chão com lágrimas e o acariciava com beijos (LSC 19, 5). Também refere que Clara gozava com doçura a bondade divina (LSC 20, 1). As irmãs ficavam admiradas com a doçura que vinha da sua boca e rosto parecendo mais claro (LSC 20, 3); a alma cumulada de luz verdadeira na oração estava transparecendo no corpo (LSC 20, 4), depois que saía da oração.

A Legenda Versificada descreve Clara saboreando a oração e o calor que tinha ao estar com o Esposo. Ficava como que inflamada e tinha alegria de inflamar as irmãs com fogo do que tinha a dizer. Também faz referência ao fato de que seu rosto se tornava mais claro, iluminado, comparando-a com Moisés que ficou com o rosto iluminado por encontrar-se com o Senhor, na montanha. (2LV19). A Legenda ainda diz que ela latejava de afeto e prostrava-se por terra em lágrimas. Abrandava os lábios, parecendo que já tocava Cristo (2LV  17). No processo de canonização também há testemunhos sobre Clara em oração, sobre como se colocava inteira, deitada por terra (PC 1, 7 e 9) e como resplandecia seu rosto ao sair da oração, em forma de um rosto mais claro e uma doçura que desprendia de sua boca (PC 6, 3)

Força da oração

Outra característica da oração de Clara é a força que emanava de sua oração. Na Legenda e no Processo de Canonização são muitos os testemunhos de milagres que foram alcançados pela força de sua oração. A Legenda de Santa Clara relata que a oração de Clara colocou os sarracenos em fuga de Assis. Saíram rápidos pelos muros que tinham pulado, derrotados pela força da sua oração (LSC 22, 9).

No Processo de Canonização este relato aparece no testemunho de três irmãs. São dois episódios diferentes: um em setembro de 1240 e outro em 1241. Em ambos os casos Clara é apresentada como salvadora (Rotzzeter, 1993, p. 248). No depoimento de Ir. Filipa, a terceira testemunha, é descrito o episódio dentro de uma situação de medo em que Clara demonstra ser mulher que põe sua confiança em Deus. (Rotzzeter, 1993, p. 249). ...recorreu ao auxílio da costumeira oração. E foi pela força dessa oração que os inimigos sarracenos foram embora (PC 3, 18). No depoimento da Ir. Francisca, a nona testemunha, esse relato também aparece. Os sarracenos haviam invadido o claustro do mosteiro, Clara pediu que a carregassem até a porta do refeitório e pusessem diante dela a caixinha com o santo Sacramento do Corpo do Senhor, prostrou-se por terra em oração e orou com lágrimas... os sarracenos foram embora (PC9, 2). Rotzzeter (1993, p. 250) ao comentar este testemunho diz que assim corrige-se a ideia transmitida através de milhares de quadros de Clara com o ostensório na mão – era uma caixinha com o santo Sacramento.  

Também há relatos de outros milagres alcançados pela força da oração de Clara somente com o sinal da cruz: um menino levado a Clara com uma pedra no nariz; ela fez sobre ele o sinal da cruz e a pedra lhe caiu na mesma hora (PC 2, 18). Curou uma irmã do mosteiro também com sinal da cruz (PC 3, 10). A quarta testemunha foi curada de hidropisia, febre e tosse com o sinal da cruz feito sobre ela por Clara (PC 4, 7). E muito mais testemunhos do processo de canonização aparecem com este teor: a força da oração de Clara. Ela acreditava nessa força, pois na iminência de algum perigo, todas as Irmãs recorriam sempre ao auxílio da oração por ordem da santa madre (PC 6, 11).

A força da oração de Clara ia além dos muros do mosteiro. Gregório, o sumo pontífice, orava sabendo apoiar-se nos méritos de Clara para conseguir o amparo de suas preces (2LV23). 

Clara - clareando

Em cada tempo e em cada lugar Deus vai suscitando pessoas que se deixam encontrar por Ele e que alimentam esse encontro, o buscam, sabendo que são buscados. Entre elas estão Francisco e Clara. No seu tempo, souberam deixar-se interpelar por Deus. O Espírito do Senhor e seu modo de operar foi conduzindo-os para encontrar-se com Deus, o Verbo feito carne – Cristo pobre, humilde e crucificado. A jovem Clara de Assis deixou-se encontrar por Deus e enriqueceu esse encontro com a prática da oração, gerando uma forma de vida.

Ela faz a experiência da ação do Espírito do Senhor na sua vida. Inspiração divina, luz no coração, graça divina são expressões usadas por Clara para indicar como sente a ação do Espírito, que a leva à unidade consigo mesma, com as irmãs e com o próprio Deus. O Papa Francisco nos lembra que a oração é uma resposta do coração que se abre a Deus face a face (GeE nº149), é encontro com Deus que vai nos possibilitando discernir, à luz do Espírito, os caminhos de santidade que o Senhor nos propõe. (GeE nº150)

Esta ação experienciada está fortemente ligada ao espírito de oração e devoção que Clara tinha presente no seu cotidiano. São horas de encontro com o Senhor, num diálogo assíduo com o esposo. Os relatos nos mostram uma mulher que entendeu a oração como parte do seu caminho de seguimento a Cristo. Ela revela busca constante de oração pessoal, com as irmãs e com a Igreja (RSC 3, 1-7). Sem preguiça nem tibieza, ela é a primeira a se colocar em oração (2LV 17; LSC 20, 8). Ela expressa a sua adesão total a uma vida de oração e a uma vida em oração, toda inteira com todo o seu ser. Clara testemunha uma vida intensa de oração o que transparece nas suas expressões dirigidas a Inês de Praga: abrace o Cristo (2In18); ponha o coração na figura da substância divina e transforme-se (3In13); unir-se com todas as fibras do coração (4In 9). A Ermentrudes ela aconselha: ore e vigie sempre (Er13). É uma forma de vida na qual se revela a maneira clareana de observar o santo Evangelho (RSC 1,2).

A intensidade com que ela vive a oração também se expressa na força da sua oração em que emerge a ação do Espírito do Senhor que transforma, inclusive aquilo que ela toca. Igualmente suas palavras são capazes de transformar, como relatam as testemunhas dos milagres operados por Clara. Ela demonstrava total confiança na santa operação do Espirito do Senhor e as pessoas confiavam totalmente na força da sua oração.

Clara, no seu tempo, deixou-se tocar por Deus e não se cansou de buscar o encontro com Ele pela oração. Daí brotou um modo de vida marcado por uma espiritualidade.  Cada época deve reinventar, reler, encontrar uma nova síntese, um projeto de espiritualidade (Tolentino, 2016, p. 26). Papa Francisco, em sua Exortação Gaudete et Exsultate, nos lembra que “cada santo é uma missão; é um projeto do Pai que visa refletir e encarnar, em cada momento da história, um aspecto do Evangelho. ” (nº19)  Então nós, no nosso tempo, iluminados por Clara, busquemos reinventar ou recriar a forma de vida segundo o Evangelho impulsionada pela espiritualidade. À luz de Clara podemos perguntar-nos sobre nossa experiência da ação do Espírito, nosso espírito de oração, nossa postura, a participação do nosso corpo na oração. Com que intensidade, profundidade, qualidade cultivamos nossa vida de oração?

Oremos mutuamente a Deus por nós...e vamos cumprir com facilidade a lei de Cristo. Amém. (Er17)

 

BIBLIOGRAFIA

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 1.ed. São Paulo: Paulinas, 2013.

GRÜN, Anselm. A oração como encontro.  2ed. Petropolis: Vozes,2001

BRUNELLI, Delir. Ele se fez caminho e espelho: o seguimento de Jesus Cristo em Clara de Assis. Petrópolis: Vozes, 1998.

IRIARTE, Lázaro. Letra e espírito da Regra de Santa Clara. Porto Alegre: Escola Superior São Lourenzo de Brindes, 1978.

ZAVALLONI, Roberto. A personalidade de Clara de Assis: estudo psicológico. Petrópolis: FFB, 1995.

FONTES Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes/FFB, 2004.

ROTZETTER, Anton. Clara de Assis: a primeira franciscana. Petrópolis: Vozes, 1994.

TOLENTINO MENDONÇA, José. A mística do instante: o tempo e a promessa. São Paulo: Paulinas, 2016.

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate: sobre o caminho à santidade no mundo atual. 2. ed. Brasília: Edições CNBB, 2018.


Colaboração: Ir. Vania Simone Martins, cifa